Ponto de Partida

África

Angola

África

“Sinto-me orgulhoso de ser africano, meus antepassados, todos nasceram aqui. Filhos legítimos de um mundo rainha, minh’áfrica oiê, oiê. Bravo Angola Oiê, oiê, Oiê. E a Namíbia Oiê, oiê. O Mandela Oiê, oiê, Oiê. Cabo verde oiê, oiê”.

Essa canção aprendemos em Angola.  Em 1989, recebemos um convite para nos apresentarmos nesse país que estava se reconstruindo de uma guerra civil.  O convite partiu de um amigo que tinha negócios em Luanda e nos ajudou na infra-estrutura e logística. A proposta era reinaugurarmos o teatro Avenida com nossos espetáculos. Um adulto e um infantil. Drummond e A Vaquinha Lelé. Não sei como tudo se deu, só sei que atravessaríamos o oceano. Pensei em Itambacuri, uma cidade que planejamos conhecer, mas a distância nos impediu. Muito longe, não ia dar certo! Depois das pequenas viagens pela região, iríamos direto para Luanda. Luanda linda.

Talvez aí tenha nascido o gosto pela palavra e o desejo de fazer versos. Assim também percebi o que é a força de um grupo. A Regina, nossa diretora, apaixonada por raízes e ancestralidades, foi enfática: de tantas heranças que temos da África, uma delas é a música. Temos que levar para Angola um musical, como reconhecimento de tudo que eles nos deram. A escolha do repertório foi rápida. Clássicos da MPB. Foi isso que o grupo decidiu levar de presente para os irmãos consanguíneos.  Mesmo com a total falta de dinheiro, o grupo trouxe para essa empreitada o músico Gilvan de Oliveira, que abraçou a causa e nos ajudou nos arranjos e escolha do repertório. Estávamos ainda inseguros de fazer um espetáculo musical, em praça pública, no coração de Luanda. Imaginem! Cantar o que? Dançar o que para aquele povo cantante e cheio de malemolência. Para nos deixar mais seguros, o grupo convidou nossa professora de dança, Angela Virgínia, que nos deu noções de samba e dança afro e também entrou para o espetáculo. Convidamos também o percussionista Bill Lucas, nascendo assim, “Travessia”.

O nome foi inspirado em Guimarães Rosa, mas também significava nossa travessia pelo oceano ao encontro de nossas raízes. Passando por cima de toda a produção que envolvia essa viagem, desde a construção de 18 caixas azuis, de todos os tamanhos, aterrisso no aeroporto de Luanda.  As marcas da guerra não escondiam totalmente a beleza da cidade. Mas dava tristeza de ver as ruínas e mais ainda, a quantidade de pessoas mutiladas. Cicatrizes de uma guerra que ainda estava longe de acabar. Andávamos constantemente escoltados por representantes do governo, para evitar qualquer acidente. Desde a expulsão dos portugueses em 1975, O MPLA e a UNITA, disputavam o poder, deflagrando uma luta que se intercalava com períodos de paz. Mesmo em trégua, viviam em alerta pelos ataques dos guerrilheiros em aldeias próximas. Apesar do clima tenso, a hospitalidade, a simpatia e o humor dos angolanos nos deixaram à vontade. Era incrível ver os homens andando de mãos dadas pelas ruas. As mulheres e suas lindas vestimentas carregando o filho amarrado nas costas. Cestos na cabeça. Gamelas na cintura.  Imagens de um povo amoroso.
Das apresentações, ficou em minha memória a praça apinhada de gente, inclusive em cima das árvores. Uma multidão nos unindo a uma só voz: “Viver e não ter a vergonha de ser feliz”. Inesquecível.

Comovente também foi receber os pequenos, os “putos” como eles dizem, para assistir a Vaquinha Lelé. As crianças vieram todas. Da cidade e das aldeias. Ouvíamos da coxia elas entrando no teatro e exclamando: “que frescor”, por causa do ar condicionado.  O teatro já estava lotado, mas a fila lá fora virava quarteirões. Que pecado mandar esses meninos irem embora. A Regina, como sempre, foi rápida: são tão pequeninhos! Cabem dois em cada cadeira! E assim, quebrando regras, a plateia duplicou. No final do espetáculo, quando a luz se acendeu, era um mar de crianças e nossos corações aos pedaços. Ensinamos para eles uma canção de Paulinho Pedra Azul e eles cantaram afinadíssimos: “todo mundo quer voar, nas asas de um beija flor, todo mundo quer viver de amor, mas nem tudo é só querer…” Explodimos em choro e abraçamos aquelas crianças com todos os braços de nossa alma.

Voltamos para o Brasil impregnados daquela gente. De seu sofrimento, de sua alegria, de sua luta por um mundo melhor. Por muito tempo, no final de nossos espetáculos, falávamos deles. E para matar a saudade abríamos em quatro vozes, perseguindo aquela sonoridade encantadora: “sinto-me orgulhoso de ser africano, minh’África oiê, oiê”.

Lido Loschi